Nego Drama

terça-feira, 12 de outubro de 2010

NO BRASIL NÃO EXISTE RACISMO, SOMOS UM PAÍS MISCIGENADO...

Mais um debate – o primeiro confronto pela Band, entre os presidenciáveis que disputam o segundo turno - e, mais uma vez, o mais absoluto silêncio sobre o tema que interessa e diz respeito diretamente a 51,3% da população brasileira e, indiretamente, a todo o país: a desigualdade racial, fruto de quase 400 anos de escravismo e de mais 122 de racismo pós-abolição. A dívida eterna, reconhecida pelas elites dominantes, porém nunca paga.
Nenhuma palavra de Serra ou Dilma sobre os indicadores da desvantagem, todos notórios porque recolhidos por organismos de pesquisa insuspeitos - do IPEA, órgão do Ministério de Planejamento do próprio Governo Federal, ao DIESSE, instituição mantida por Sindicatos e centrais sindicais.
Todos os indicadores expõem, com a eloqüência dos números, os lugares que ocupamos na pirâmide social brasileira: os piores, sempre os piores.

* empregados negros ganham menos do que os brancos - até 50% menos - dependendo da região do país;
* há mais desemprego entre os negros do que entre os brancos nas várias regiões metropolitanas do país;
* Negros tem 2,2 anos a menos de escolaridade média do que os brancos, desde 1.929;
* A indigência é 70% negra, embora os negros representem 51,3% da população. Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza 70% são negros, entre os 53 milhões de pobres do país, 63% são negros.
* As mulheres negras tem ainda maior desemprego e menor renda que os homens negros;
* a mortalidade infantil tem caído mais para brancos do que para negros;
* o analfabetismo é maior entre negros que entre brancos, quadro que se mantém apesar da diminuição do analfabetismo em ambos os grupos;
* o esgoto e a água tratada vão menos a larres negros do que a lares brancos;
* a expectativa de vida para os negros é, em média, seis anos menor que para os brancos.

Entretanto, tanto para Serra quanto para Dilma, esse não chega a ser problema, ou não é relevante o bastante para merecer atenção e propostas. Ainda assim, querem o nosso voto.

O candidato e a candidata se ocupam de quase tudo: do aborto, da privatização, falam de saúde, educação, segurança etc; quando falam de segurança, por exemplo, sempre de passagem e genericamente, é como se não soubessem que na guerra não declarada do Estado contra os pobres quem morre mais são os negros.

Aborto, polêmica falsa e agenda conservadora

A polêmica sobre o aborto - mais falsa que uma nota de mil - revela que um e outra estão irremediavelmente presos a uma agenda conservadora que não se propõe a discutir os problemas reais do país. Não tocam nem de passagem em outra questão fundamental para os cidadãos (ãs): uma reforma profunda no modelo político-eleitoral-partidário que apodrece à olhos vistos e à céu aberto pela corrupção e a compra de votos declarada.

Serra e Dilma tornaram-se reféns dessa agenda por uma razão muito simples. Dilma e o lulo-petismo, que algum dia já foram de esquerda, e Serra e tucanos, que em passado remoto se pretenderam representantes da social democracia brasileira, não conseguem mais esconder de quem detenha um mínimo de informação, o que de fato, são: expressões da velha política de centro direita que hoje dá as cartas em plena era Lula.

O que temos então, em resumo, são dois candidatos que, do ponto de vista político e ideológico, tentam se vender como diferentes, porém, tem muito mais convergências do que divergências entre si.

Sim, porque ninguém com um mínimo de honestidade poderá atribuir ao Governo Lula qualquer resquício de esquerda, posição de que abdicou ele próprio pouco depois de assumir a Presidência, no mesmo contexto em que confessou que, na Oposição, se tornara especialista em bravatas. É o “pai dos pobres”, a quem mantém com o Bolsa Família, e a “mãe dos ricos” – os banqueiros, que “nunca antes neste país” lucraram tanto.

Sustentado por índices de popularidade, só comparáveis a Getúlio Vargas, no auge do populismo getulista, Lula – pela agenda e pelo programa – faz um governo escancaradamente de centro direita. Quem tiver alguma dúvida, confira quem são os parlamentares eleitos sob o guarda-chuva do lulo-petismo nestas eleições e tire as conclusões por sua própria conta e risco.

Ainda assim, se dúvidas restar, observe como o PMDB, com Michel Temer de vice, afia os dentes para lançar-se, com a voracidade que lhe é própria, aos nacos da Esplanada que ainda não domina ou influencia.

Serra e o seu PSDB, por sua vez, são produto do que pretendeu ser a social-democracia brasileira. Uma social-democracia que, sem nunca ter botado a mão na massa – nem se apresentado como oposição de fato, coisa que os tucanos de punho de renda jamais se dispuseram a fazer - há décadas tornou-se a expressão dos setores da classe média paulistana, com viés udenista moralista.

Mais do mesmo

Um e outro – Serra e o PSDB, e Dilma e o PT – embora com passados e histórias diferentes apontam oferecem a mesma alternativa. É como se, aceitando o que propõe ambos, estivéssemos irremediavelmente condenados a escolher “mais do mesmo”.

São e representam expressões distintas de como lidar com a mesma agenda e nesta agenda os temas relevantes para a população não têm espaço, porque nem um nem outro - a não ser pelo esforço da propaganda – conseguem responder a seguinte questão:

a) como retirar o país – que é a oitava economia do Planeta - da vergonhosa condição que ocupa, como um dos 10 mais desiguais do mundo, sabendo-se que a desigualdade social tem como um dos seus elementos estruturantes a desigualdade racial, a herança maldita do escravismo; b) como responder as demandas reais dos setores explorados da população – na sua imensa maioria, negra - que ocupa os piores indicadores sociais e cuja juventude nas perifereias é alvo da matança cotidiana, generalizada e sistemática pelas mãos da Polícia – um horizonte e um futuro.

Aliás, nesse tema do aborto – mais apropriado ao moralismo carola -, as posições de ambos são rigorosamente iguais. Serra e Dilma defendem a discriminalização. Como se trata de tema explosivo por envolver valores morais arraigados na sociedade e pelas pressões da Igreja, incluí-lo na agenda acaba se tornando até útil porque não deixa de ser uma cortina de fumaça para evitar o debate real, que tudo indica, não acontecerá nesta campanha.

É pela mesma e inversa razão que a temática da desigualdade racial passa ao largo e os dois candidatos silenciam, com uma única diferença: os setores conservadores católicos e evangélicos tem força para impor o aborto na agenda; nós negros, embora representemos 51,3% da população brasileira, não.

E não temos força por duas razões:

1 - pela omissão da parcela de intelectuais negros e não negros – alguns dos quais ativistas e cotistas indignados. Tais intelectuais, ou estão presos às carteirinhas dos partidos a quem servem, ou tem uma visão conservadora da política: consideram até legítimo e necessário defender cotas e ações afirmativas em colóquios e seminários, porém, “fogem como o diabo da cruz”, quando se trata de assumir publicamente suas posições políticas, inclusive para preservar seus próprios interesses como interlocutores com o Estado e com Governos;

2 - pelo fato da maioria de ativistas e lideranças terem sido cooptados pelos “puxadinhos” dos partidos e Governos, para serem uma espécie de alegoria de uma inclusão que não há nem nunca houve. A cooptação se dá pela mesmo caminho com que o Governo Lula domesticou os movimentos sociais – inclusive as entidades e articulações negras -, a quem mantém sob controle, como uma espécie de tropa de reserva para a defesa das suas posições.

Política nos Partidos

Para essas lideranças, fazer política sim, desde que seja no espaço dos seus respectivos partidos. Curiosamente os setores mais conservadores e tradicionalistas da sociedade tem exatamente essa visão: a política é tarefa para os políticos.

Tais lideranças negras aceitam, passiva e docilmente, a regra de que a política deve ficar a cargo dos políticos que dirigem os seus partidos. Como sabemos que todos esses partidos – de A a Z - reproduzem racismo institucional, dão às costas ao tema do racismo, e se recusam a ajustar contas com a herança maldita de quase 400 anos de escravismo e de mais 122 anos de racismo pós-abolição (veja-se o caso do deputado Aldo Rebelo, maior liderança do PC do B no Congresso e abertamente contrário às cotas e ações afirmativas) qualquer discussão sobre o tema fica inviável.

Não se propõem a sequer negociar junto aos presidenciáveis que apóiam, uma pauta com propostas que no diga respeito, conforme propõe o Movimento Negro Unificado que, embora rejeitando um deles – no caso Serra -, conclama a que o apoio a Dilma seja condicionado a um programa, a um projeto e a compromissos da candidata de enfrentar o abismo da desigualdade que nos atinge.

A urgência da organização política dos negros


Por tudo isso, convém lançar na pauta, desde já, um tema que não pode mais ser protelado: a criação de uma organização política negra e antirracista de caráter nacional, capaz de abranger todos os setores excluídos da sociedade – negros, indígenas e os pobres, os setores médios progressistas, que pretendam romper os muros do modelo reprodutor da injustiça e da desigualdade em que tucanos e o lulo-petismo querem que nos mantenhamos.

No modelo tucano-petista, ou lulo-petista-tucano, concentrador de renda, excludente e nada democrático, a Democracia não é para nós – a plebe rude, majoritariamente negra - mas apenas para os “cidadãos” como na Grécia antiga - não reconhece direitos aos escravos - no caso os seus descendentes que somos todos -, nem sequer para merecer menção em um debate entre os dois candidatos que disputam a Presidência da República.

A amplitude da Democracia que defendem e praticam chega, no máximo, aos estratos da classe média incluída dos grandes centros urbanos.

O único espaço disponível nesse modelo é o “puxadinho”, o atalho da inclusão subalterna em que a porta que reservada a nós para o acesso à cidadania é a dos fundos, vale dizer: uma cidadania, de segunda classe, de segunda mão, na prática: cidadania alguma.

Dê-se o nome de Partido, Frente, Congresso, ou o que seja, não importa. Chegou a hora de rompermos a tutela perversa que nos ata a esse modelo concentrador e excludente. Temos história, temos homens e mulheres capazes de romper os muros do gueto e falar para o Brasil, em todas as áreas de atividade – nas artes, na música, na política, na Academia, nos movimentos sociais.

Lideranças como João Jorge, do Olodum, Mano Brown, o líder dos Racionais, Reginaldo Bispo, Hamilton Borges, Márcio Alexandre, e tantos outros por esse Brasil afora, estão chamados a dar voz de comando, convocando uma grande encontro ou Convenção, ou Congresso – para estancar a dispersão que tem caracterizado as iniciativas, a maior inimiga da nossa união e empoderamento.

Há, em cada bairro, em cada gueto desse país, em cada favela, em cada morro, centenas de ativistas honestos e dedicados, jovens anônimos, que não aceitam negociar a dignidade nem a alma rebelde “por trinta dinheiros.”

Não há modelos prontos, nem acabados. Tudo é construção. O mais importante é que seja uma organização política, com um Programa, capaz de romper de vez com a servidão negra, que recupere a nossa auto-estima tão lesionada pelo racismo e a história dos movimentos e organizações políticas desde a resistência dos quilombos.

E que se proponha à construção de uma agenda que ponha no centro do debate do país, a questão da igualdade; que seja capaz de propor novas alternativas, de Estado, de Governo, de Democracia e modo de vida.

Não tenho dúvidas de que, uma organização que não tenha como centro de sua ação, a disputa de eleições – muito menos pelo modelo político-eleitoral-partidário vigente – com uma proposta de união na diversidade de posições políticas e ideológicas, sem a busca de hegemonismos fáceis e unida por um Programa de Ação, será capaz de reunir e aglutinar a energia militante de centenas, quem sabe, milhares de homens e mulheres negros em todo o país, e dos nossos aliados antirracistas, para sonhar e lutar por uma República e por um Brasil em que não sejamos mais “bucha de canhão” ou “a carne mais barata do mercado.”

A hora é agora. Mãos à obra!

fonte afopress/ Por Dojival Vieira

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